domingo, 2 de julho de 2017

Ter pés e caminhar.

No primeiro semestre da 4ª série reprovei em Educação Física. Aquele primeiro 4,00 numa disciplina que "ninguém reprova". Reprovei em Educação Física, com 10 anos de idade. Decepção pra minha vó, "a fundadora da escola de educação física da UFRGS". (Nem sei se de fato ela se importou ou não, mas na minha cabeça ficou a lógica de que havia cometido o grande crime de levar tristeza a minha vó).
Minha mãe foi conversar com a professora que logo disse que a nota se justificava porque eu "não tinha coordenação motora". Ninguém conseguiu falar nada pra professora... Ficamos caladas, eu e minha mãe... Tempos depois pensei sobre a relação de NÃO TER coordenação motora e reprovar na matéria e sobre didática, ensino etc...


Minha mãe decidiu trocar de escola... Não pela reprovação em si, mas pela forma como tudo foi conduzido... Se eu não tinha coordenação motora, não era pra professora me ajudar a desenvolver isso, ao invés de simplesmente reprovar?

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Alguns meses depois, voltando pra casa, depois de um domingo de muita brincadeira na casa da minha melhor amiga, ao entrar no portão de casa, sinto uma fisgada intensa no pé. Tento colocar o pé no chão e caminhar, mas sinto muita dor, quase de dar tontura, entrei em casa andando que nem saci. Expliquei pra minha mãe onde doía, não sei se ela acreditou muito ou não, mas disse que se não melhorasse no dia seguinte me levaria ao médico. Manhã seguinte, lá vamos nós... O ortopedista da família atendia de tarde, eu estudava de tarde e minha mãe trabalhava de tarde... A solução foi irmos ao ortopedista que atendia pela manhã. Ele examinou o pé, disse que era um problema no calcanhar, colocou uma tala e disse pra minha mãe que deveríamos alugar um par de muletas. Ficaria assim por 10 dias e voltaria lá pra ele avaliar.
10 dias depois volto ao consultório, tiro a tala, coloco o pé no chão e "vejo estrelas", uma dor tão intensa que lembro até hoje dela. Ele tira um raio-X do calcanhar, tira do tendão, diz que é um problema no tendão e me deixa mais 10 dias de tala e muleta. No retorno, minha mãe resolveu que deveríamos ir ao Dr. Murilo. Ele tira a tala, mexe no meu pé, faz um raio-X, faz outro... Analisa os exames anteriores que não tinham nada de errado e explica que minha ossada tá toda no lugar, aparentemente meu pé não tinha nada... Ensina uma massagem com sal grosso, água morna e garfo que minha vó passou a fazer diariamente e pede que eu siga tentando caminhar. Sigo de muleta, mas dessa vez sem tala. 


Lá pelas tantas, uma colega de trabalho da minha mãe diz pra ela que tem um acupunturista que vem de goiania de tempos e tempos e pode me atender... Minha mãe meio incrédula pergunta ao Dr. Murilo o que ele acha... Ele, sem titubear, afirma que ele não tem o que fazer, meu pé não tem nada e minha dor é real, melhor tentar algo novo... Na época ninguém nem falava sobre esse tratamento... Aparentemente o tal médico de Goiânia era o único que atendia na cidade... Pense! Pois bem, segui com as massagens noturnas feitas pela minha vó, comecei a fazer o tratamento com acupuntura, de tempos em tempos voltava pro dr. Murilo me avaliar e assim foram 3 meses sem colocar o pé no chão, sem conseguir caminhar, sentindo muita dor ao colocar o pé no chão. 
No lembro bem quando foi que tirei a muleta de vez, lembro que no dia da minha primeira comunhão amanheci e consegui caminhar!!! "Foi um milagre!", todos disseram... Entrei caminhando na igreja e emocionei todo mundo que tava lá... Passei o dia caminhando devagar, à noite, meu pé latejava, aquela pisada de ver estrelas apareceu e assim fiquei mais alguns meses de muleta... Até um dia que a abandonei de vez.


Depois desses três meses, minha perna direita era fina como um palito, a esquerda grossa, totalmente desproporcional... Voltei a caminhar... 

No verão seguinte fui viajar com a família nas férias, fomos pra um apartamento de praia, que ficava no sétimo andar... Logo nos primeiros dias, numa brincadeira pelo prédio fiquei presa no elevador... Resultado, passei as férias inteiras com medo de elevador, subindo e descendo 7 andares de escada toda vez que chegava ou saia do apartamento em que estávamos... Aquela menina que até dois meses antes não conseguia nem caminhar subia, descia escadas e engrossava suas batatinhas... 


Até hoje ninguém sabe a causa da dor que eu sentia, nem o que curou tudo... 
O ortopedista nunca encontrou nada, mas na época não existiam os exames que existem hoje. 


O acupunturista explicava que eu tinha algum problema nos ovários e que isso por alguma enervação provocava a tal dor... 
Muitos anos depois em uma consulta com uma fisioterapeuta, por outros motivos, contei que tinha uma dor no pé, vez ou outra... Ela mexeu no meu pé, tocou nuns ossinhos, deu um estalo e a dor sumiu... Explicou que, em função da hipermobilidade que tenho e da forma como fico em pé, os tendões podem sair do lugar e meu pé fica pressionando... Então, na época, podia ser isso aí...
Mas ano passado pensando em tudo isso associei a algum fator psicológico em relação a reprovação da educação física... Me lembro muito da dor, então sei que eu não inventava nada, mas vai entender como o corpo reage a certas coisas...


Como curou também ninguém sabe, minha vó garante que foram as massagens dela, outros garantem que foram orações, outros dizem que foi a acupuntura, eu acho que foi tudo isso um pouco junto e misturado com todo o amor que recebi de todo mundo a minha volta, inclusive dos meus colegas e professores da escola nova, que mal me conheciam e super acolheram aquela menina tímida que de repente começou a andar de muleta.

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Ainda adolescente descobri a caminhada. Com o "excelente" sistema de transporte coletivo de Brasília, eu acabava optando por fazer tudo a pé, ao invés de esperar o ônibus e ficar mais um tempão parada em engarrafamento... Fazia tudo caminhando nas asas do plano... De lá pra cá, cá pra lá...
Eu gostava de pedalar também, não tanto como de caminhar, e sempre a passeio, nunca como meio de transporte... Mas ia feliz da 3 do lago norte pra 14 visitar meu padrinho de bike, patins ou a pé... Com isso as batatinhas foram ganhando forma e dizendo a que serviriam.
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Muitos anos depois, já na faculdade, no meio de uma aula senti novamente aquela dor absurda no pé, fui no melhor ortopedista de porto alegre, o cara analisou e me indicou o colega dele, especialista em pés, fiz raio-X, ecografia, cintilografia, ressonância magnética e mais uma porrada de exame que não existia 15 anos antes. Nos exames não aparecia nada... e eu sentia aquela maldita dor... Depois de algumas tentativas sem sucesso com alguns medicamentos, ele me receitou uma injeção qualquer. Se depois de dez dias voltasse a doer o pé eu deveria voltar no médico...
A dor passou e voltei a fazer as aulas... no décimo dia após a injeção eu estava no meio de um workshop do Lume, era tipo o terceiro dia de aula com muita exaustão e pula, agacha, corre, lança... De repente meu pé começou a latejar intensamente, a dor voltara, cada vez que eu colocava o pé direito no chão percebia que tinha acabado o efeito da injeção... Eu sabia que a dor não era pelo exercício e nem cansaço, mas decidi enfrentar aquilo, as aulas anteriores tinham sido incríveis, eu não queria desistir... Resolvi enfrentar a dor e me acostumar com ela... Acabou a aula, eu segui com a dor no pé, mas não voltei no médico... com o tempo esqueci dela, vez ou outra ela vinha com mais força e me fazia lembrar dela, não era mais a mesma dor absurda do início, e nem a dor que eu sentia na infância, mas tinham aquelas alfinetadas no pé como se alguém rasgasse a sola, como se meu pé não coubesse em si mesmo e precisasse rasgar a pele pra ganhar seu tamanho real.. Segui a vida como se aquilo fosse normal, caminhando e fazendo as aulas de corpo, interpretação e tudo mais que uma faculdade de teatro pode oferecer....

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Ainda na faculdade de teatro, uns dois anos depois desse episódio eu estou fazendo uma oficina de acrobacia, a professora nos ensina a "avestruz". Eu decido ficar de base, o rapaz que deitaria em minhas costas pesava mais de 80kg. Possicionamos ele de forma errada nas minhas costas, o peso não distribuiu pelo corpo e acabou pressionando a lombar. Senti que tava errado, mas demorei a reclamar, porque o menino tava plantando bananeira com a cabeça no meio das pernas de outra pessoa e deitando o corpo sobre minhas costas, eu não podia cair, nem ele. Quando tiramos ele de cima eu estava paralizada, era muita muita dor nas costas, a professora passou algum remédio, me indicou uma fisioterapeuta e eu sai de lá andando, mas com muita dor.

Descobri que eu tinha a lombar retificada e que isso estava gerando uma hernificação na L3/L4. A acrobacia só acelerou um processo que viria em outro momento se eu não tratasse logo. Meses de fisioterapia, cinta e exercícios para poder voltar a minha vida normal sem me queixar... Foi nesse processo que falei sobre a dor no meu pé e a fisioterapeuta colocou "os trem" no lugar.

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Todas essas pequenas histórias são para falar sobre caminhar... Eu via meus amigos fazendo travessias de bike, e me sentia incapaz de acompanhá-los... Mas um dia lembrei das minhas caminhadas pelas asas de Brasília e isso mexeu em mim... Senti que aquilo eu poderia fazer!


Eis que fui caminhando pra Pirenopolis... Minha primeira longa caminhada. Eu já havia feito trilhas, já tinha viajado sozinha... Já tinha caminhado...

Mas ir de uma cidade a outra caminhando, passar um dia inteiro caminhando com a mochila nas costas, jamais.

Caminhar me fez descobrir um tanto de mim. Toda vez que concluo uma travessia, curta ou pequena, me sinto realizada, sinto que consegui algo meu, sinto que o mundo pode andar sob meus pés, sinto que meus pés podem pisar firme em qualquer terra... 


Quando conto das minhas caminhadas algumas pessoas me perguntam se eu preciso pagar promessa ou algo do tipo... Não, não caminho pra me punir, caminho pra me descobrir. 
Nunca depois de concluir algum trabalho me senti tão realizada e poderosa como me sinto após fechar uma caminhada. 


Às vezes quando começo uma trilha, naqueles momentos iniciais de cansaço e peso nas costas, eu penso "pra que isso? porque gosto disso?" E sempre quando volto pra cidade tenho a certeza de que ainda preciso caminhar e caminhar muito e sempre.

Minha primeira viagem sozinha, fui em um final de semana pra Veneza, Vicenza, Padova, Verona e Milão... Cinco cidades em dois dias... Hoje prefiro ficar dois dias caminhando em um lugar qualquer do que correr tanto. Viajo pra dentro, me descubro pra dali olhar pra fora...


Eu não corro, não sinto que consigo correr, não pedalo, tenho muita dificuldade com a pedalada, não malho no dia a dia.. Tenho pés e caminho.

Aquela menina da muleta hoje só pensa em desbravar o mundo pisando firme um pé após o outro. Sentindo firme cada pisada na terra, sentindo firme o corpo que carrega. 


Superação! Superar-se, descobrir-se a cada nova caminhada!

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